Facções recrutam jovens indígenas no Extremo sul baiano, diz jornal
- Redação
- há 6 horas
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É fato: onde o Estado não está, o tráfico impera. No caso de Caraíva, em Porto Seguro, região do Extremo Sul da Bahia, as facções nadam de braçada. Uma prova cabal é a temida Anjos da Morte (ADM), que aterroriza moradores e indígenas. A organização foi criada dentro da Aldeia do Xandó, a partir de uma reestruturação do Bonde do Maluco (BDM) nas terras pataxós. E não menos grave: assim como acontece com os adolescentes das periferias de Salvador, os jovens indígenas são cooptados pela ADM e têm uma participação expressiva na facção, inclusive na execução de pessoas do próprio povo.
Até outro dia, a fama terrível da Anjos da Morte estava restrita à região sudeste. Suas atrocidades vieram à tona no dia 10 deste mês, quando, numa operação que envolveu policiais civis, militares e federais, resultou na morte de duas pessoas, entre elas um dos gerentes da facção, Ramon Oliveira Cruz, 33 anos, o Alongado. “O restante se dividiu. Parte fugiu pelo mar de lancha. A outra foi em vários carros, passando por cima das aldeias, pelos matos e ainda ameaçou indígenas para não denunciar”, conta uma moradora antiga de Caraíva.
Ela conta que uma das maiores facções do estado já havia se estabelecido no território indígena, ponto de partida para a criação da Anjos da Morte, que traz como símbolo a figura de um anjo segurando um fuzil. “O BDM já era uma realidade aqui, muito antes da pandemia. Não dá para dizer ao certo qual foi o motivo, mas houve uma separação e esse tal de 'Gordura' trouxe gente de fora, até de outros estados, juntou com alguns indígenas, a maioria com menos de 18 anos, e formou a Anjos da Morte”, conta a mulher, que cita o líder da ADM, Ullian da Silva Guimarães, o "Gordura", preso no dia 13, em Minas Gerais.
"Gordura" é nativo da Vila de Caraíva. Filho do traficante "Biuzão", vivia numa casa perto do campo de futebol e cresceu no mesmo ritmo do pai, e já na adolescência era temido entre os ribeirinhos. Seus irmãos – um homem e uma mulher – seguiram também a mesma cartilha, mas não tiveram a sorte que dele: foram mortos pela polícia na cidade de Pindorama.
Expansão
A ADM estaria para o BDM, assim como BDM está para o Primeiro Comando da Capital (PCC). Ou seja, uma relação de parceria, que, além de transações comerciais de armas e drogas, inclui apoio logístico para enfrentamento de concorrentes, com fornecimento de suporte bélico e de efetivo. “É o que podemos dizer até o momento. O próprio BDM surgir dessa estratégia, de separação, para melhor expansão”, explica um policial civil da região do sul, ao lembrar que o Bonde do Maluco foi uma ramificação da extinta Caveira, que atuou por muitos anos em Salvador.
Desta forma, além de Caraíva, a Anjos da Morte está em Arraial D’Ajuda, Trancoso, ambas também regiões turísticas de Porto Seguro, além de Santa Cruz Cabrália e diversos povoados, disputando com o Comando Vermelho (CV) e em alguns casos com o Mercado Povo Atitude (MPA).
Indígenas recrutados
O território Xandó é apenas uma das mais de 30 aldeias dentro da terra indígena de Barra Velha. O turismo na região Pataxó existe há mais de 50 anos, porém o fluxo intenso de turistas, principalmente nos últimos 10 anos, trouxe também às terras indígenas, o aumento do consumo de drogas. “Dentro do Xandó, a reserva está atormentada. Essa facção vem recrutando os jovens indígenas. Está dentro de Caraíva, Nova Caraíva, Pindorama, Coqueiro Alto”, diz um morador, que também é comerciante local.
A cooptação desses jovens tem uma explicação. “Antes, os nativos tinham uma vida mais simples. Mas tudo mudou com esse turismo exacerbado. Hoje, eles querem ter apenas 1% dessa elite de milhões. Se querem sentar num restaurante, eles precisam pagar R$ 100 por um prato para fazer parte do próprio território. Por ser um local pequeno, essa discrepância é grande. Para se ter uma ideia, existe uma loja de grife na beira de um rio. E ela não é a única em Caraíva. São várias”, declara uma profissional de educação local.
A informação é ratificada por José Augusto Laranjeiras Sampaio, presidente da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), organização não-governamental dedicada à defesa e à promoção dos direitos dos povos indígenas. “Realmente existem jovens recrutados pelo tráfico e hoje, a Aldeia Xandó é marcada pela presença de indígenas e não indígenas. Essa é uma preocupação das lideranças. Existe um conselho dos caciques que é contra e faz denúncias e pede providências”, declara Sampaio.
De acordo com ele, “Porto Seguro é um pólo forte do turismo, seja do mochileiro, que vai consumir maconha, até o de alto luxo, que vai atrás de cocaína. Lá, existe droga para todo tipo de classe econômica. Já o crack é consumido pelos ribeirinhos”. Um biólogo diz que o “turismo é pautado em festas e drogas”. “O Centro Cultural Pataxó Porto do Boi, que é onde as comunidades expõem seus trabalhos, que poderiam ganhar dinheirinho, fica vazio, enquanto os turistas lotam os eventos particulares e em busca de entorpecentes”, conta.
Além do trágico, o povo Pataxó ainda tem que lidar com os conflitos fundiários, segundo a Anaí. Nos últimos quatro anos, cerca de 15 indígenas foram assassinados, em crimes motivados por conflitos no território da Aldeia Mãe e pelo racismo. Além da intrusão de fazendeiros, que lucram sobre terras apropriadas ilegalmente com a produção agropecuária, o lobby do turismo no entorno de Caraíva e Porto Seguro, destinos vizinhos às aldeias, causam o aumento substancial do tráfico, alcoolismo e a deslegitimação dos modos de vida indígena.
Posicionamentos
Procurada, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJDH) informou que tem conhecimento da participação de indígenas nas organizações criminosas. “O tráfico de drogas tem impactado diversas comunidades vulneráveis em todo o país. Infelizmente, as comunidades indígenas não estão imunes a essa realidade. Nesse caso, a denúncia está sob investigação. Contudo, é fundamental que eventuais casos de tráfico de drogas em comunidades indígenas não podem justificar generalizações que criminalizem as comunidades”, diz a nota enviada ao CORREIO.
A SJDH informou que o “estado, por sua vez, deve continuar investindo em políticas públicas para garantir os direitos dos povos indígenas em seus territórios, na educação, saúde, cultura e, principalmente, nas questões relacionadas à demarcação de terras”. “Desde terça-feira (13), a SJDH, em parceria com diversos órgãos estaduais, federais e municipais, está atuando no território, através da Caravana de Direitos Humanos, com ações de promoção do acesso à justiça e voltadas à garantia de direitos”.
A reportagem procurou também a Secretaria de Segurança Pública (SSP), mas até o momento não há respostas.
Correio24horas